4.17.2008

Sociedade de massas e propaganda


Construir a realidade
«A massa é uma formação nova que não se baseia na personalidade dos seus membros mas apenas naquelas partes que põem um membro em comum com os outros todos e que equivalem às formas mais primitivas e íntimas da evolução orgânica (...). As acções da massa apontam directamente para o objectivo e procuram atingi-lo pelo caminho mais curto, o que faz com que exista sempre uma única ideia dominante, a mais simples possível. (...) Além disso, dada a complexidade da realidade contemporânea, toda e qualquer ideia simples deve também ser a mais radical e a mais exclusiva».
- Simmel, 1917

Numa altura em que os pensadores da área da comunicação teorizam sobre a sociedade pós-moderna e a progressiva individualização existencial do cidadão, através dos self-media, uma observação mais atenta dos fenómenos sociais leva a concluir que, em muitos aspectos, a sociedade de massas não foi de todo ultrapassada. Consequentemente, e porque são elementos indissociáveis, verifica-se que a propaganda – pelo menos na sua essência – também não. Passado, presente e futuro de uma relação promíscua.
Propaganda. Apesar de presente na memória (e prática) humana desde os primeiros textos religiosos, enquanto legitimação do poder político, o termo aparece pela primeira vez no conceito Congregatio de propaganda fides, emitido no século XVI por um grupo de cardeais católicos.
Propaganda. Um conceito que remete automaticamente para a memória de um tempo em que os cidadãos eram desprovidos da sua individualidade e devidamente enquadrados numa massa acéfala e obediente, perante um Estado opressor. Que remete também para uma altura em que verdade e mentira, bem e mal, justiça e injustiça eram realidades moldadas e adaptáveis às conveniências de quem detinha o poder. Um conceito que, para o vulgar cidadão da sociedade ocidental, moderna e democrática, se apresenta como uma verdadeira aberração, símbolo de um passado que se quer definitivamente enterrado. Ou talvez não... A dúvida impõe-se.
O mesmo cidadão – moderno e democrático – da sociedade de informação é bombardeado diariamente por uma multiplicidade de sons, palavras e, sobretudo, imagens, que mostram como é mau o mundo em que vivemos. Imagens de guerra, de fome, de miséria, relativas a pontos distantes do globo, longe da paz e conforto do seu lar. Entretanto, nos intervalos, outro tipo de mensagens são transmitidas, pois o que seria das empresas de comunicação sem o dinheiro da publicidade? O indivíduo, por seu lado, dá graças por viver no país em que vive, pelo sistema vigente, pelo bem-estar de que usufrui.
Aparentemente isolado do resto do mundo (e, contudo, em contacto permanente com este, através de velhos e novos media), o indivíduo – sem se aperceber – está na realidade inserido numa massa exposta a um tipo padronizado de informação. Padronizado porque sujeito a modelos e interferências exteriores ao sujeito que a veicula (que, por sua vez, é passível de sanções em caso de desvio ao padrão). Se se levar em conta que essa mesma informação é formadora de opinião pública, mobilizando-a em redor de causas e dando votos e dinheiro a ganhar, então existe uma palavra que a define na perfeição: propaganda.
No livro “Touch & Fuse”, o designer Jon Wosencroft compara a propaganda a «uma adição»: «Dá um sinal imediato, mas obstrui os sentidos e, antes que se dê conta, o processo repete-se de uma forma mais fácil. O caminho para o seu aperfeiçoamento, relativamente a manifestações anteriores, persuade os utilizadores a não desistirem». Actualmente, considera que a propaganda é «a arte de adaptar o tempo à medida para pensar a ciência da persuasão».

RETRATO DE UMA RELAÇÃO

Recue-se no tempo. Tendo origens remotas na história do pensamento político, a sociedade de massas esteve na origem de todo o conceito de propaganda, em que «cada elemento do público é pessoal e directamente “atingido” pela mensagem» (Wright, 1975).
Mas, o que se poderá entender como “massas”? De acordo com Mauro Wolf – que aborda o tema de forma elucidativa no seu “Teorias da Comunicação” – estas serão um conjunto homogéneo de indivíduos essencialmente iguais, com poucas diferenças político-ideológicas, mesmo que provenham de ambientes e classes sociais diferentes. É um conjunto de indivíduos que, agregado, supera os laços comunitários, resultando da desintegração das culturas locais.
O estudo da sociedade de massas apresentado pela teoria hipodérmica (a bullet theory, desenvolvida principalmente por Lasswell) referia o facto de, numa sociedade controlada pelo Estado/partido único (como o Big Brother do “1984” de George Orwell), os indivíduos se constituírem como seres isolados, anónimos, “atomizados”, estando enredados em algo que não só os envolve como supera. É algo onde que, do ponto de vista comunicativo, se opera uma «teoria psicológica da acção».
Este processo comunicacional (Estímulo > Resposta) é, na realidade, bastante simples e imediato, estando ligado à psicologia behaviorista. Na prática, limita-se a condicionar e mesmo modelar as emoções individuais, mediante determinados estímulos, provocando assim uma reacção imediata, nem que seja ao nível interior, das emoções mais primárias do receptor. Em 1933 – ano da subida ao poder de Adolf Hitler e do NSDAP na Alemanha – Lund referiria que «estímulos e resposta parecem ser as unidades naturais em cujos termos pode ser descrito o comportamento».



PARA ALÉM DA EXPERIÊNCIA

Não haverá, em toda a história dos mass media, um fenómeno que se encaixe tão bem no conceito de construção da realidade como a propaganda. Esta estará sempre intimamente ligada à sociedade de massas, pois a sua ideia é exactamente o assegurar do controlo dessas mesmas massas, procurando criar uma realidade que sirva principalmente à elite dirigente, mas que não deixe de, simultaneamente, agradar ou desagradar (depende da orientação do discurso) aos indivíduos, expostos a algo que Mauro Wolf considera serem «mensagens, conteúdos e acontecimentos que vão para além da sua experiência». Se bem concretizada, a ideia será então criar a ilusão de que se vive na sociedade perfeita, dirigida pelos políticos perfeitos, sendo todas as alternativas consideradas como desviantes ou mesmo inimigas. A resposta é então imediata e radical, por meio de sujeitos manipulados que reagem «às ordens e sugestões dos meios de comunicação de massa monopolizados [n.d.r.: pelo Estado autoritário]» (Wright Mills, 1963).
Não se deve pensar, porém, e como é do conhecimento público, que a propaganda foi de uso exclusivo dos regimes ditatoriais. Na verdade, o seu uso foi igualmente regular entre os países que diziam defender a democracia, da Primeira Guerra Mundial às guerras do Golfo Pérsico. Foi e continua a ser, no entanto, nas ditaduras que a propaganda ganha a sua total dimensão, talvez porque, para além de um (cada vez menor) défice tecnológico, os seus propósitos sejam mais explícitos.

CONTROLO, LOGO EXISTO

Recuperando o pensamento de Mauro Wolf, este indica que, nestas situações, o indivíduo é isolado na massa (isolamento reflectido actualmente na “sociedade do vazio” em que vivemos), desligado dos seus laços comunitários e da sua própria cultura, em proveito da cultura política estatal. Era o que acontecia em “1984”, com as directrizes relativas à abolição da História, da Filosofia, da Linguagem, do conceito de família, do amor e, em última instância, do próprio pensamento (considerado inútil e desajustado aos “novos tempos”). A abolição da realidade conhecida, substituída – por vezes com mestria simbólica e estética – por outra: a do poder.
Foi o que ocorreu, entre muitos outros espaços físicos e mentais, nas salas de cinema da Alemanha nacional-socialista, da União Soviética comunista ou mesmo do Portugal salazarista (em especial nas décadas de 1930 e 40). Neste último e mais próximo caso, a população é desviada da realidade ditatorial por meio de comédias onde tudo acaba bem, com a benevolência (vigilante) do governo e a alegria constante nos rostos dos portugueses, “pobres mas honrados”, trabalhadores e patriotas, como – de resto – convinha ao Estado que fossem.
Agora, e enquanto se ainda se discute se as ideologias tradicionais estão ou não condenadas ao desaparecimento, é isso que continua a acontecer, em pleno século XXI. E se o cidadão não se apercebe, então é porque talvez os métodos propagandísticos utilizados pelo(s) “poder”(es) sejam mais sofisticados do que nunca. Controlado pela ditadura do bem-estar, o indivíduo não questiona, captando a realidade que lhe é transmitida pelos mass media e tornando-a sua.
Por outro lado, adapta-se a um novo tipo de uniformização comportamental. Para esse efeito, o “poder” (lobbies políticos e económicos) opta agora por uma estratégia – politicamente correcta – de assimilação de comportamentos outrora considerados desviantes, tornando-os socialmente aceitáveis (e economicamente rentáveis) e integrando-os na massa. Como poderão os indivíduos – incluindo os próprios profissionais da comunicação social, que se querem imparciais e objectivos – resistir ou, pelo menos, avaliar criticamente toda esta pressão?
Sobre esta realidade (será que o é, de facto?), Jon Wosencroft explica que técnicas desenvolvidas em tempo de guerra são agora aplicadas em tempo de paz, depois de terem sido devidamente testadas e aprovadas. «Hoje em dia, toda a comunicação que não for desenvolvida para além de uma segura conversa entre duas pessoas ou num pequeno ajuntamento (e que não for gravado) pode facilmente ser convertida em propaganda. Estudos de mercado, anúncios, colocação de produtos e publicidade, processamento de imagem, design sonoro (…) são criadores de uma camuflagem – de tal forma que até os principais protagonistas, os políticos, apelam frequentemente a um “campo de jogos plano”».
É certo que o imediatismo – por vezes brutal – da informação hipodérmica da propaganda deu lugar à persuasão e ao funcionalismo das comunicações de massa, mas – sofisticação à parte – a principal preocupação de certos sectores continuará certamente a ser a mesma: “controlo, logo existo”.
Bibliografia consultada:
WOLF, Mauro: Teorias da Comunicação, Lisboa, Editorial Presença,1987 (1ª edição);
WOSENCROFT, Jon: Touch & Fuse, Porto, Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, 1999.

Nuno Loureiro
Imagens: Fernando Ferreira

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